Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.
Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.
Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
— não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.
Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada.
Vocabulário
Fugidias: fugazes, efêmeras, passageiras.
Primeira mulher a alcançar destaque no cenário da poesia brasileira, Cecília Meireles escreveu vários livros de poesia em que desenvolveu as tendências da corrente espiritualista da segunda geração, sob a influência dos poetas que formariam o grupo da revista Festa, de inspiração neossimbolista. Depois, afasta-se desses artistas, sem, contudo, perder as características intimistas, de introspecção, numa permanente viagem para dentro de si mesma.
Suas reflexões conduzem a poesia a uma busca pelo eterno, não propriamente em seu sentido divino, mas sim ligado a um desejo de transcendência do espírito pela matéria, canto que procura a essência da experiência de existir:
“E nessas letras tão pequenas
o universo inteiro perdura.
E o tempo suspira na altura
por eternidades serenas.”
A produção literária de Cecília Meireles ocupa um lugar à parte na literatura brasileira, pois ao contrário das intenções nacionalistas e das inovações na linguagem encontradas nos modernistas, manteve-se presa ao lirismo de tradição portuguesa, mas com uma expressão bem pessoal. Através da depuração da linguagem musical e cadenciada do Simbolismo, transformou em belos poemas a sua melancolia e o sentimento da saudade e do tempo, que tudo devora:
“Quando um vulto humano se arrisca,
fogem pássaros e borboletas;
e a flor que se abre, e a folha morta,
esperam, igualmente transidas,
que nas areias do caminho
se perca o vestígio de sua passagem.”
Sua sensibilidade manifestava-se na valorização da intuição e da emoção como formas de interpretar o mundo. Para isso, parte de certo distanciamento do real imediato e dirige os processos imagéticos para a sombra, o indefinido, o sentimento da ausência e do nada. Nas palavras da própria Cecília “a poesia é grito, mas transfigurado”. A transfiguração se faz no plano da expressão.
O lirismo delicado que caracteriza suas obras está intimamente ligado a imagens da natureza ( a água, o mar, o ar, o vento, o espaço, a rosa, etc.) e do infinito, compondo uma atmosfera de sonho e fuga. Dedicou-se ao desenvolvimento de temas como o amor, o tempo, a transitoriedade da vida e a fugacidade das coisas, como evidencia o poema “Motivo”( parte integrante do livro Viagem). Sobre ele, assim declarou Mário de Andrade:
“Uma adequação extraordinária do sentimento lírico ao texto versificado (...) impressão de adequação absoluta, pela simplicidade, pelo acordo, pelo tamanho do pensamento expresso, sem palavras demais”.
Vale a pena reiterar que um dos aspectos fundamentais da poética de Cecília Meireles é a sua consciência de que tudo é transitório; por isso mesmo, o tempo é personagem central de sua obra: o tempo passa, é fugaz, fugidio. Numa entrevista a autora fala da transitoriedade da vida, dando uma espécie de chave para melhor compreensão de sua poesia:
“Nasci aqui mesmo no Rio de Janeiro, três meses depois da morte de meu pai, e perdi minha mãe antes dos três anos. Essas e outras mortes ocorridas na família acarretaram muitos contratempos materiais, mas ao mesmo tempo, me deram, desde pequenina, uma tal intimidade com a morte que docemente aprendi essas relações entre o Efêmero e o Eterno que, para outros, constituem aprendizagem dolorosa e, por vezes, cheia de violência. Em toda a vida, nunca me esforcei por ganhar nem me espantei por perder. A noção ou sentimento da transitoriedade de tudo é o fundamento mesmo da minha personalidade.”